sábado, 28 de maio de 2011

Aquele-que-não-deve-ser-nomeado

Será que ele é ggg?
Palavras nomeiam coisas. Agem em nome do que representam. O inominável esgota-se em perda do corpus e não tem capturabilidade. É tiro sem bala.
Vali-me de ironia para intitular meu blog. Acho que a pergunta tem que, urgente, ser contraperguntada: “O que será que L. é?”. Antes da queda na tentação de subentender gay como completador natural à indagação “Será que ele é?”, é preciso – tal qual navegar é – assumir a sustinência da frase, assumir que as rédeas são puxadas como em mãos aflitas, a cavalo, surpreendidas pelo penhasco: a impronunciável palavra gay.
         “Homossexual” está desenquadrado para o uso cotidiano como está “ânus” para substituir “cu” quando manda-se ir tomar nele. Pensemos: expressões tais quais “levar na bunda”, “tomar no cu” e “vai dar o rabo” não solidarizam com o vocabulário cortesão. Mas consummatum est. Et pourquoi?
         Porque fingir refinamento francês, o revivalismo cristão das citações latinas e o alegado espírito cosmopolita dos familiarizados com o idioma inglês não nos assegura títulos de bons-moços, de bem-criados, de cidadãos do mundo, de iluminados pelo século XXI. Tomamos o bonde errado e o destino principal do nosso embarque é o passado.
         “Brincar” com as palavras faz parte do nosso processo de mutilação do ser para garantir o enfraquecimento das minorias. O negro não foi simplesmente considerado carne de segunda por força do divino. Quem disse não para a mulher, em um mundo guiado pelo (sempre bem habilitado à direção) homem, não foi sua suposta natureza frágil. Não foi a seleção natural que derrotou seis milhões de judeus em troca de um único austríaco. O verbo edulcorou a acidez dessas e outras atrocidades. Posso enxergar uma mulher, mas é a manipulação da palavra que me habilita a vê-la como objeto.
         O Brasil é brincalhão. Brinca que a loira é intelectualmente incapaz, que preto caga na saída se não o fez na entrada, brinca de golpear homossexuais com duas lâmpadas fluorescentes, de assassinar a jovem Adriele Camacho de Almeida para interromper seu namoro com outra garota, brinca de violentar soldado de 19 anos em quartel de Santa Maria e proteger quatro denunciados porque a vítima é gay. E não de hoje, começa cedo a brincadeira de chamar de maricas ou mulherzinha o menino que estiver com medo.
O Brasil é um país temente a Deus, tanto que a Igreja católica excomunga os envolvidos no aborto sofrido por uma criança de 9 anos estuprada pelo padrasto. O motivo, para dom José Cardoso Sobrinho, é que aborto é crime e a lei dos homens não está acima das leis de Deus. Tanto que bancadas evangélica e católica do Legislativo tentam derrubar a decisão do STF sobre a união civil. Pois o Judiciário não entende nada de justiça divina. A Justiça do Rio não entendeu que a Igreja Universal do Reino de Deus possa recorrer da decisão de indenizar a aposentada Edilma de Oliveira, chutada em culto por um auxiliar de pastor com a boa intenção de acertar o demônio e, desde o exorcismo, em 2004, vítima de lesões irreversíveis.
         Basta claridade para ver o malabarismo de discurso para “confundir a opinião pública”, como têm dito certos (e errados) políticos. O deputado goiano Ronaldo Caiado, expoente da bancada ruralista e membro de uma família proprietária de latifúndios com histórico de desmate e trabalho escravo, chamou de mandruvás os verdes que se opuseram à aprovação do novo Código Florestal, em sessão realizada na última terça-feira (24). Criticou os ambientalistas por morarem nas cidades e discutirem assuntos que ele entende como estritos ao campo. Ora, eu próprio, no ano passado, tive a oportunidade de vê-lo saindo de seu prédio localizado em área nobre de Goiânia.
A política e as lavouras fizeram muito bem ao patrimônio do deputado Caiado, e foi em nome disso, não da realidade do pequeno homem do campo, que ele discursou inflamado pela queima da floresta. Do contrário, teria havido uma reflexão sobre a morte do casal José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, executados a tiros depois de sofrerem ameaças de madeireiros. Duas vítimas do descaso do governo, como definiu a sobrinha do líder extrativista que defendia a vida da floresta, ciente de que, para isso, submetia a sua própria ao risco. “Meu tio foi vítima do descaso. Ele ficava muito exposto e nunca os governos se manifestaram para dar apoio a ele. É revoltante, principalmente porque ele lutava por algo que deveria ser uma bandeira de luta do governo federal e estadual e não apenas dele”.
         Em vez disso, no dia em que o meio ambiente ficou duplamente em luto, ecoaram risadas no Congresso quando o caso foi lembrado.
         Na mesma sessão, o presidente da Frente Parlamentar Evangélica, delegado e deputado João Campos (PSDB-GO), e o vice-presidente da mesma bancada, Anthony Garotinho (PR-RJ), condenado por crimes de formação de quadrilha, corrupção, lavagem de bens, abuso do poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação, ameaçaram o governo: convocariam Palocci para explicar seu enriquecimento durante o mandato de deputado federal caso a decisão de distribuir nas escolas kit anti-homofobia fosse levada a cabo.
         A presidente recuou e os evangélicos e católicos, também. Prova de que, somando o coro, estão se lixando para o país, Campos e Garotinho desistiram de investigar Palocci, já que suas preces foram ouvidas por Dilma. O Ministério Público Federal assumiu o compromisso de vistoriar os ganhos do ministro da Casa Civil, como coube ao Supremo decidir sobre a validade da Ficha Limpa e a vigência da união homoafetiva estável. Se a Frente Parlamentar Evangélica se ocupou de suspeitar de alguma ilicitude, foi apenas para chantagem e uso como moeda de troca em favor de agrados do governo. Estão trabalhando pelas próximas candidaturas junto a seus eleitores fiéis, mas sua pendência com a função para a qual foram designados no Congresso é notória e imperdoável. Estão em dívida com o povo brasileiro.
         Há duas semanas e meia, os evangélicos impediram a votação do projeto que criminaliza a homofobia. Não por não acharem que homofobia não exista, mas por eles praticarem-na. A depender do bom-senso parlamentar evangélico, é preciso ignorar as mortes e agressões cometidas do Oiapoque ao Chuí devido a ímpetos homófobos. Evidente que eles não seriam a favor de que o assunto fosse levado às escolas em linhas pedagógicas.
         A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) apoiou a distribuição dos kits contra a homofobia por avaliar que eles contribuiriam na “redução do estigma e da discriminação”, além de promover equanimidade e qualidade no ambiente escolar.
         Pasma que, em vez de julgar positivo o projeto no combate à discriminação e unir forças para aprimorá-lo, tenham feito campanha contrária, valendo-se inclusive dos tentáculos dos meios de comunicação do segmento (destaque para a cobertura tendenciosa da Record) para difamar os kits. E a que eles recorreram senão à trapaça lexical? O material pulou de “kit contra a homofobia” a “kit gay”. E fica clara a corrupção do sentido primeiro, de combater com educação a violência e intolerância contra homossexuais, traduzido dolosamente para uma espécie de manual para tornar-se gay, como se estivesse ao alcance ou fosse a intenção do MEC decidir a orientação sexual do indivíduo.
         Quem se esforça inutilmente por esse poder são outros. Os mesmos que armam-se de ferramentas ideológicas para conferir tarja preta à palavra gay e, com isso, afogar a existência homossexual. O paraíso é um lugar bíblico não frequentado por efeminados, mas aos gays é perfeitamente cabível a existência pacífica de grupos que testemunham o mundo com diversidade de olhares; não à toa a palavra diversidade ter sido inexoravelmente colada à semântica homoafetiva.
         Escolho o caminho sustentável pelo qual pessoas e suas circunstâncias podem andar em pés de igualdade. Assim me sinto sagrado, sem brincar de esconder a letra n, como insistem em agir aqueles que não devem ser ocultados: os hipócritas.

domingo, 15 de maio de 2011

O mal sonoro de Bolsonaro

Uma vez, o folclórico deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), em frente ao seu gabinete, pendurou um cartaz ofensivo aos militantes da Guerrilha do Araguaia (1972-1975). No cartaz: "desaparecidos do Araguaia, quem procura [osso] é [cachorro]", com as respectivas imagens entre colchetes. Ele se referia à busca de parentes pelas ossadas de militantes mortos na guerrilha desaparecidos na região.
Na condição de militar e político de mandato eletivo, em lugar de solidariedade, agrediu os familiares: "Já não basta o que conseguiram. Agora eles querem mais dinheiro. Querem se posar de vítimas, não têm história para contar. Esse pessoal tem que ficar no lixo da história, tem que dar graças a Deus que os militares, naquela época, impediram a esquerda de tomar o poder".
Bolsonaro renasceu no show business pela respostada que deu à cantora Preta Gil, filha de Gilberto Gil, no programa CQC (BAND): “Preta, não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco e meus filhos foram muito bem educados. E não viveram em ambiente como lamentavelmente é o teu”.
Reeleito pela sexta vez deputado, em debate em torno da “Lei da Palmada”, ano passado, afirmou: "Se o filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um couro e muda o comportamento dele".
Jair Bolsonaro é suplente na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. O lugar é certo, a pessoa é errada. Explicação ou engano, já saiu de sua própria boca que “A Comissão só defende direitos de picareta e de vagabundo”.
Para padrões de direitos civis e humanos, Marta Suplicy (PT-SP) está, sem esforços, anos-luz à frente de Jair Bolsonaro, porque, forçosamente, ele está anos-luz atrás. Dado o histórico indigesto de polêmicas, comunicar o nome deste político não cai bem aos ouvidos. Bolsonaro é mal sonoro. E não há em sua aparição outra coisa senão emblema do quanto o preconceito subtrai a qualidade do conceito.
Na última quinta-feira, como papagaio de pirata atrás de Suplicy, que cedia entrevista, Bolsonaro rebolava para ganhar a publicidade e exibir seu panfleto “anti-gay”, contra PL do lançamento de kits anti-homofobia nas escolas, da qual Marta é relatora. A senadora Marinor Brito (PSOL-PA) reagiu à provocação de Bolsonaro. “Foi uma atitude covarde”, contou Marinor. “Ele veio por trás da senadora Marta quando ela estava dando uma entrevista”.
“Tira isso daqui, rapaz, me respeita!”. Ao dizer, Marinor bateu no panfleto de Bolsonaro. “Bata no meu, aqui. Vai me bater?”, respondeu Bolsonaro. “Eu bato! Vai me bater?”, rebateu Marinor. “Depois dizem que não tem homofóbico, aqui. Tu és homofóbico. Tu deveria ir pra cadeia! Tu deveria ir pra cadeia! Tira isso daqui. Homofóbico, criminoso, criminoso, tira isso daqui, respeita!”, prosseguiu a senadora do PSOL. Ele contra-atacou: “Ela não pode ver um heterossexual perto dela que sai batendo. Ela não pode ver um macho que fica louca”.
Conforme Marinor, “Bolsonaro é contra esse projeto porque ele tem medo de ser preso após a aprovação. Não é de hoje que ele dá declarações ofendendo as pessoas”. Ela peneira a misoginia: “Ele agrediu a atual ministra Maria do Rosário quando ela era senadora, a então deputada Manoela D’Ávila (PCdoB-RS), a Preta Gil e agora a mim? Sabe-se lá quantas outras agressões ele já não cometeu contra mulheres”, ponderou a senadora Marinor.
Mayara Petruso, aquela estudante de Direito que sugeriu, ano passado, que se fizesse um favor a São Paulo matando afogado um nordestino, foi desligada do Escritório Peixoto e Cury Advogados, na capital paulista, onde estagiava. A OAB do Ceará cobra resposta do MPF acerca dos usuários do Twitter Amanda Régis e Lucian Farah, que compuseram as desafinadas declarações: “Esses nordestinos pardos, bugres, índios acham que tem moral, cambada de feios. Não é à toa que não gosto desse tipo de raça” e “Acho que eh soo .. bando de viado que roobaram esse jogo... nordestinos burros!”.
Cada qual nas suas proporções. Bolsonaro não é um perfil da rede mundial de computadores, ele salta ao oficial, no Congresso. Sua relação no parlamento, como atestado ante as câmeras que focavam Marta Suplicy, é de parasitismo.
No alto das minhas sessões de psicanálise, percebi as situações em que o jogo de linguagem trapaceia as trancas do inconsciente. Negar para afirmar e afirmar para negar. Aqui, já me penso intolerante por insurgir contra a intolerância. Quantas vezes Bolsonaro precisará não ser mais gay?

domingo, 8 de maio de 2011

João-ninguém é maria vai com as outras

A religião é berço doutrinário do intolerantismo e, embora seja prática consolidada dirigir a harmonia entre os povos – a santa paz –, pode invocar esse recurso como última instância na violência cruzada ou acobertada por véu – a guerra santa. O Estado democrático de direito é laico e, em face do irresolúvel, o Supremo Tribunal Federal (STF) é sua última instância na pluralidade de onze pensamentos irrigados da Lei Maior do país.
O intolerantista religioso encerra o diálogo em nome de Deus. “Mas não sou eu quem está falando, é Ele”, ouvi certa vez de alguém que tentava me persuadir do pecado gay, supostamente inscrito em I Coríntios, capítulo seis, versículo nove (com todo o respeito, só decorei-o facilmente pela combinação meia nove). O recado é que os efeminados não herdarão o Reino de Deus.
A opinião – e não o ponto final costumeiro, de ênfase exclamativa, com que o intolerante religioso pretende arrematar uma discussão, confluída aos limites da armação dos próprios óculos – fundada no recortado ensinamento pilular (um de dezenas de milhares de versículos), manobra-se ao sabor do intérprete e da combinação.
         É nessa estratégia falaciosa, de sujeitar o todo à partícula, que o deputado federal goiano, João Campos, questionou a constitucionalidade da união homoafetiva no dia em que o STF iniciou julgamento histórico com respeito ao assunto. “A Constituição é clara no seu Artigo nº 226, parágrafo terceiro”, disse ele em texto publicado na editoria de opinião do jornal “Diário da Manhã”, em 4 de maio.
A Carta Magna reconhece “a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Com isso, Campos transbordou o sentido patente para dizer que a Constituição não reconhece a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Não é isso que está escrito lá. O texto constitucional é guardião da igualdade, liberdade e dignidade humana, inclusive na proteção do Estado às minorias. E se o legislador, como o ministro Luiz Fux houve por bem anunciar junto com o voto, não garante a defesa, compete ao Judiciário fazer cumprir.
Enxergar além do que se vê na Lei é desconfiável porque, deste modo, se enxerta o subentendido onde há resoluções pétreas com importância extensiva e imutável. Então, não pode ser ambíguo. Para o artigo 226, dizer do reconhecimento legal à união estável heterossexual como entidade familiar não é o mesmo que dizer do reconhecimento legal apenas à união estável heterossexual como entidade familiar. Seria discriminatório, se assim o fosse, e a Constituição Federal não discrimina.
As entrelinhas são lacunas da parte escrita, não o expressamente dito. No espaço em branco cabem acepções conflitantes, e elas não podem ser apreciadas pela Suprema Corte mais que a escritura literal.
         A caligrafia contemporânea da sociedade brasileira escreve em caixa-alta que 60 mil casais de igual sexo dividem igual teto, que o país tem mais lares habitados por um só morador do que nunca, que a violência causada por homofobia gerou, de janeiro a novembro do ano passado, 205 assassinatos no país. Mas o superintendente de Direitos Individuais e Coletivos da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro, Cláudio Nascimento, projetou para até 12 mil os casos de discriminação contra a população LGBT no mesmo período de 2010.
         A realidade instalada é eloquente e não há interpretação que engula a população gay do território nacional. Ela pode ser proibida de subir ao altar, mas este é um aspecto, um direito das igrejas de selecionar quem participa de sua doutrina e quem não pode com seus ritos, no âmbito de sua liberdade regrada. O que não pode é o Estado, representado por seus poderes, privar da liberdade plena para exercício da identidade de orientação sexual um grupo pátrio marginalizado por I, G, R, E, J ou A, por menor que ele seja. Este é o zelo pela igualdade.
Além de deputado federal – modo como assina o artigo –, o também delegado e pastor João Campos emaranhou ideias indefensáveis. Em “O casamento não faliu”, Campos começa falando que, ao ler a matéria “Casar esta (sic) na moda”, editada dias antes no Diário da Manhã, veio-lhe, “de imediato, à memória as profundas transformações que vem sofrendo nossa sociedade ao longo dos últimos anos”. Em desenvolvimento ligeiro ao raciocínio, redundou: “São mudanças profundas que mudam de certa forma o nosso comportamento e visão de mundo”.
Ele atribui as “mudanças profundas que mudam” ao que avaliou como “conglomerado de informações que devastam nossa cultura, consciência, valores, princípios e conceitos éticos imprescindíveis à nossa sobrevivência social e espiritual”.
O que ele pretendeu dizer com isso? Que a sociedade “tem deturpado o sentido real do casamento”. A sustentação nada laica (daí acho uma pecha conceitual ter-se apresentado apenas deputado, ao passo que podia incluir o papel de líder religioso, para ser honesto com o leitor desavisado), com a qual justifica-se, é a de que a deturpação do casamento “nasce quando um novo matrimônio é constituído e tem tentado destruir a imagem do lar que, a princípio, foi estipulado por Deus!”.
O exemplo enunciado pelo pastor, de que “o poder do casamento sobre a vida das pessoas é algo que chega a impressionar”, foi o recente casamento entre Catherine Middleton e William, o príncipe.
Mas de que valoração à união conjugal este exemplo fala a não ser do casamento na condição de espetáculo, de narração amiúde dos bastidores da realeza britânica – que vai do casamento ao divórcio, do modelo imitável ao escândalo –, de cada réplica de anel, vestido e de toda filigrana convertida a produto na indústria de banalidades empacotadas sob a forma de notícia (e sob o conteúdo publicitário). Eis a estruturação espetacular que rui o sentido íntimo e particular do casamento, encontrado, por exemplo, na união de homossexuais, que não partilha do favorecimento midiático.
O deputado insufla sua versão de verdade usando a tutoria religiosa no tom profético, negligenciando o espírito democrático que resguarda minorias e com disparates como dizer temer “por uma decisão equivocada e tendenciosa do Supremo”, ou ainda: “Se o motivo (de, na união estável, se querer assegurar a casais homossexuais direitos iguais aos de casais heterossexuais) for apenas para efeitos patrimoniais, vejo que não há necessidade de afirmar que o relacionamento entre homossexuais seja um casamento”.
Mas, como não é apenas para fins patrimoniais, há necessidade.
“Não há, por minha parte, oposição aos efeitos patrimoniais das decisões em relações homoafetivas, mas considerá-las como união estável seria no mínimo incompatível”.
         Incompatível com o quê? Com o que pensa João Campos? Mas por que considerá-lo se até o STF, com sua observância e rigor técnico no cumprimento da Constituição, ignorou-o?
Motivos para desautorizá-lo ele próprio deu. Muitos. Mentiu ao dizer que “o fato de o casamento ser a união de membros do sexo oposto é tão profundamente arraigado na natureza humana que ele tem sido assumido, sempre e em todo lugar, sem qualquer discussão”.
         Hoje, o Brasil vive essa discussão, e perceber que no Congresso há quem seja ignorante a ela dá o diagnóstico do despreparo político dos nossos legisladores e sua falta de compromisso com as questões do país.
João Campos não é despreparado apenas para legislar. Contraria o entendimento moderno de família como grupo unido pelo amor e por laços afetivos. “É óbvio que não há uma segunda opção na estrutura da família, o que há são interesses e mentes distorcidas que querem, a qualquer custo, legalizar as suas vontades, independente de serem ou não atos que atentam contra a moral.”
Para ele, “A família provê a perpetuação biológica da espécie humana”, quando na verdade nem sempre. Não é a perpetuação que está em jogo no agrupamento familiar. Isso funcionaliza o vínculo. É da mesma ideologia machista que reconhece a mulher como reprodutora.
Que se saiba: um casal gay não anula um casal hétero que por ventura venha a se unir por fins específicos de procriação (ainda que, neste, o homem peça depois à mulher que aborte, ou que a mãe deposite o rebento em alguma lixeira, ou ainda que esse filho, crescido, seja malquisto pelos pais caso seja gay).
Por razão íntima e inviolável algumas pessoas gostam de outras com mesmo sexo. É por foro íntimo, e não outra força maior, tanto quanto um heterossexual adota relacionar-se com seu sexo oposto e tem a comodidade de estar conforme a maioria.
É nesse espaço de liberdade que eu empregaria a palavra saudável. O pastor João Campos propõe aplicação diferente:
“Não podemos aceitar que os valores que solidificam uma sociedade saudável, estabelecida sobre o respeito e a moral, não fazem (sic) mais sentido para quem detém o poder, já que nas suas posições e decisões eles preferem legalizar o erro a ter que combatê-lo”.
         “Combatê-lo” foi uma expressão infeliz do também (não percamos de vista) delegado Campos. O que significa combater a união entre pessoas do mesmo sexo em vez de legalizar? Impedir que elas se unam? E como se daria? Nem uma intimidadora força de polícia é capaz de combater que alguém prefira A por O.
         Conforme alguns ministros, a decisão do Supremo Tribunal Federal “foi a travessia que o Legislativo não quis fazer” e é o primeiro passo para vencermos “o ódio e o preconceito em nome da lei”.
A união homoafetiva é uma realidade social, e faria bem à sociedade se João Campos, em lugar de repetir estultices sobre o assunto, copiasse as declarações de repúdio pleno e absoluto a atos de covardia e violência contra homossexuais, à espécie do que fez o Supremo na semana histórica para os direitos humanos. A ministra Cármen Lúcia refletiu que, sedimentado um direito, fica difícil entender que houve dificuldades para conquistá-lo.
Somos testemunhas oculares da discussão que enseja elevar o Brasil à estatura de países democráticos de referência no trato igualitário e digno de suas populações. Alguns, por legislarem em causa própria, são assintomáticos ao desejo de emancipação coletiva e defendem escravidões alheias, senzalas para terceiros, parâmetros para encontrar no outro o passageiro de segunda classe.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Osama Boom Laden

"Esta noite, posso informar ao povo americano e ao mundo que os Estados Unidos conduziram uma operação que matou Osama Bin Laden, o líder da Al-Qaeda e terrorista responsável pelo assassinato de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes (...) Depois de troca de tiros, eles mataram Osama Bin Laden e tomaram seu corpo sob custódia (...) a justiça foi feita."
Presidente dos EUA, Barack Obama

“Na medida em que a Al-Qaeda e Osama Bin Laden estiveram e continuam por trás de estratégias políticas que privilegiam o terrorismo, nós só podemos nos solidarizar com as vítimas desses atos e com aqueles que buscam justiça.”
Secretária de Estado americana, Hillary Clinton

"Isso é um marco na luta contra o terrorismo, mas a batalha contra a Al-Qaeda continua e não termina com a morte de Bin Laden"
Ministro das Relações Exteriores brasileiro, Antonio Patriota

Se justiça “foi feita” mas o ato não estanca a “guerra ao terror”, é de se pensar no futuro que vaticina as imperfeições desse pretérito. Nos bastidores, o efeito prático da morte de Osama é a ressurreição de Obama para o eleitorado norte-americano.
Dom Januário Torgal Ferreira, das Forças Armadas de Portugal, em preferência à prisão do líder terrorista em vez da morte, declarou defender “a abolição do mal pelos meios mais humanos e mais humanizadores”. Mas o bispo observou ter sido melhor sua morte que ir para o inferno de Guantánamo.
O presídio da base militar americana em Cuba – consta do pacote de promessas do, à ocasião, candidato à presidência Obama – deveria ter sido desativado. Não foi, e conforme documentos vazados pelo WikiLeaks a organizações de notícias no fim de abril, 172 pessoas permanecem presas, classificadas em maioria como de alta periculosidade. Para analistas, a prisão tem sido prolongada ao máximo. Tuberculose, gota, hepatite e depressão são doenças apresentadas por alguns dos prisioneiros, mas não há registro dos métodos de interrogatório, “incluindo a privação do sono, prisão em posições de stress e exposição prolongada ao frio” (New York Times).
Decifrado o discursista, quem é Obama senão responsável pelo assassinato do responsável pelo assassinato?
Posiciono-me contra toda frente terrorista. Desta àquela.
Há os que discordam e há os que festejam na Times Square mais uma morte; coisa que eu, particularmente, só faria ante a resolução do problema de derramamento de sangue pelas tensões geopolíticas.

domingo, 1 de maio de 2011

Eu não vos declaro marido e mulher

A aclamação “Eu vos declaro...” gravada na caixa-preta do inconsciente coletivo estabelece na nossa tradição “monogâmica” mais que o enredo particular de um casamento religioso entre um homem e, obrigatoriamente, uma mulher. A frase reserva influência extensiva e restritiva, já que não poderá ser usada em favor das outras combinações.
A Igreja zela pela multiplicação da espécie. É contrária ao aborto, ainda que a mulher, proprietária incondicional do feto, declare incapacidade de gestação, parto e seu devir. É contra uso de métodos contraceptivos, indiscutivelmente a maneira mais empregada por casais que, se não nenhum, têm a quantidade de filhos conveniente ao bolso, sem com isso comprometer a rotina de sexo intra e às vezes (licenciados pela hipocrisia que nega tudo diante do altar) extraconjugal.
Seria tolerável a uma cerimônia até mesmo o casamento de fachada, feito por interesses reclamados em áreas indiferentes ao apregoado “amor”, que o casamento force-se instrumento de negócios, que seja defectível à promessa de ir até que a morte os separe. A única rigidez intratável, a qual não permite vista grossa ao drible executado pelo jeitinho brasileiro, é a declaração de marido e mulher; não marido e marido, não mulher e mulher.
Bem sabemos de quando o índio, perante o certo e errado da Igreja, não tinha alma, um negro não frequentava o mesmo espaço de culto que um branco, e como essas morais autorizaram barbáries. Tendo poder de veto a quem pode ir e vir no tapete vermelho dos nubentes, a Igreja dos tempos de hoje informa: casar é proibido em caso de relações homossexuais.
No alto dos vinte e um séculos de contagem da História, é tempo para perguntar:
Que importância tem a falta desse aval?

A grande virada

Olá. Maio e eu voltamos*. Em começo de semana, domingo. Um século e um quarto atrás, a revolta de Haymarket amotinou operários de Chicago que protestavam por melhores condições de trabalho – daí, explicam a origem para comemorações internacionais vividas no dia primeiro.
Um século e um quarto depois, números preliminares do recenseamento 2010 são divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A nova cara do Brasil não é predominantemente branca. Pela primeira vez na história dos Censos, 123 anos depois de assinada a Lei Áurea (1888; em 13 de, também, maio), menos de 50% dos brasileiros se declararam brancos.
O nó racial oferecido na pesquisa do ano 2000 foi designar “preto” para identificar parte da população negra, também formada de pardos na metodologia do instituto. A década corrida foi arena em que digladiaram debatedores da política de cotas. Contrários a ela não se declaravam iminentemente racistas – antes, defensores da tese de que, estabelecendo as cotas, se reforçava a ideia de incapacidade dos negros; que a questão maior era a pobreza e, logo, os grilhões eram econômicos, não os raciais; que um cotista derrubava a vaga do branco esforçado, porém excluído pela vaga a menos; e ouvi de uspianos que a realidade do cotista em sala de aula (na dita melhor universidade do País) era de negros isolados por seus professores e, em segundo momento, evadidos. Só faltou argumentarem que a causa da desistência era, no caso “singular” da negritude, banzo.


Mostra a tua cara

Foi importante que a primeira década do milênio tocasse o dedo em feridas seculares. Nenhum argumento para justificar a queda das cotas nas universidades, por mais canhestro, como o não de alguns professores quanto a educar os cotistas, ficou preterido do debate.
Hillary Clinton acrescentou à discussão ao vir ao Brasil e dividir a experiência dos EUA nas ações afirmativas, que garantiram, dentre outras conquistas, a ocupação da presidência do país por um negro. A secretária de Estado confrontou as estatísticas nacionais, que pesam um lado da balança com metade de sua população afro-brasileira e esvaziam o outro, com apenas 2% dela ocupando assento no ensino superior.
Não se justificou defender o ensino público de qualidade em oposição às “paliativas, infundadas e preconceituosas” cotas, pois a solução ideal de quem prefere o negro ao sabor unicamente de seu talento e sorte, em pés de desigualdade estatística e histórica com os brancos no Brasil, não é exequível.
Por quê?
Porque não vingou a propositura do senador Cristovam Buarque (PDT) sobre filhos de políticos frequentarem escolas públicas (leia-se, a maioria dos políticos assume o indigno trabalho prestado contra a Educação no País e nega-se a degustar do cardápio indigesto oferecido aos brasileiros – com a irônica ressalva dos registros de desvio de dinheiro público destinado à merenda escolar de “brasileirinhos”, como outrora referiu-se a president Dilma ao falar dos nossos alunos). Porque o Brasil não exigiu essa nada mais que justa aplicação (ou seja, entende-se que esteja tudo certo no fato de caber somente aos pobres o dissabor da deseducação). Porque a má educação forma maus professores (e, em contexto assim, é normal ouvir testemunhos de que até na catedrática USP há professores negligenciando os que mais precisam de sua atenção).
É dever do Estado chamar para si a responsabilidade sobre as limitações do País. Cumpre com seu dever o cidadão que exige representatividade de seus eleitos. E o Brasil faz muito bem em, cada vez mais, enxergar a própria cara.


*Após meio-tempo suspenso, o blog ‘Será que L. é?’ recomeçou em 01.05.2011.