domingo, 31 de julho de 2011

Mostrando o pau

         Se, na Constituição Federal, “a busca à felicidade” se tornar mesmo um objetivo em que o Estado e a sociedade se comprometem a “oferecer condições para”, uma troncuda cultura precisará ser demolida entre retoques e plásticas.
         A Proposta de Emenda à Constituição nº19 (PEC da Felicidade), de autoria do senador Cristovam Buarque (PDT-DF), possui alinhamento com a compreensão da ONU de que a felicidade é “um objetivo humano fundamental”.
         Eu caço meios para conseguir a minha. No Congresso tem parlamentares que cassam esses meios. Ou eu chamo esses sujeitos de maioria e provoco indignação de políticos que se digam dignos do posto que ocupam ou os chamo de mais fortes que os demais colegas – os bonzinhos.
         As bancadas ruralista e evangélica sofreram um inchaço e contam com quase 190 participantes. Na prática, isso significou lobby em discussões como sobre Código Florestal, trabalho escravo, latifúndios, cota de participação de mulheres no parlamento, aborto, crimes contra homossexuais.
         Quanto mais cheias, mais poder é imputado a tais alas. Têm natureza conservadora e são determinantes para subida e queda das leis. Consigo enxergar com nitidez lucros puxados para os dois grupos. O antidemocratismo do fato é que esse conjunto panfletista é parte e fatura como se fosse o todo social.
         A tacanharia pode ser vomitivamente contemplada na aptidão dos dois grandes grupos suprapartidários para governarem em favor de si e na inépcia dos mesmos no que dita a combater a corrupção. Antes disso, promovem-na. Os casos vergonhosos da primeira metade do ano, a meu ver, são: as vaias disparadas por ruralistas quando falado na tribuna da Câmara sobre a morte do casal de extrativistas em Nova Ipixuna (PA); e as negociatas de Anthony Garotinho, vice-presidente da Frente Parlamentar Evangélica e réu condenado pela Justiça a dois anos e meio de prisão por formação de quadrilha.
         Tendo acabado de matar a cobra, nada mais possível que mostrar o pau e a linhagem de políticos dos céus e da terra, capazes de fazer brochar a felicidade de ambientalistas, ativistas de direitos humanos e, provavelmente, também a sua...




sexta-feira, 29 de julho de 2011

A pergunta que não quer calar

Se no alto dos 20 anos Douglas Igor Marques parou de sair de casa à noite e sente receio de lidar com heterossexuais é porque, aos 19, sentiu na pele o tiro dado pelo sargento acusado de homicídio duplamente qualificado. Ainda na hipótese, se Douglas tivesse morrido, entraria para a estatística dos mortos por homofobia no Brasil – o país que se reserva o discurso de aceitar o homossexual, mas condenar a prática dos homossexuais. Assim sendo, Ivanildo Ulisses Gervásio teria atirado na atitude do garoto que participou da 15ª Parada Gay do Rio e foi agredido verbal e fisicamente pelo militar. Como a atitude é obrigatoriamente a pronúncia de um corpo, o acolhido homossexual só foi atingido por – veja só que incomum! – praticar a rejeitada homossexualidade.
O nome dessa “acolhedora repulsa” cambia entre a incoerência dos que não pensam sobre o que falam e a hipocrisia dos que medem tim-tim por tim-tim o que discursam.
O televangelista Silas Malafaia discursou o amor fraternal por gays e abominou não apenas a prática como o projeto de defesa a ela: a PL122. Sabe o que ele fala, em vídeo que percorre o You Tube, a respeito da reprovação pelos congressistas da lei que pune homofobia?
“É claro que não vão aprovar nada. Porque deputado e senador não é besta. Evangélicos e católicos são maioria nesse país, e nunca os evangélicos e católicos... nós andamos juntos porque temos diferença doutrinária, mas nesse assunto nós estamos juntos. E nós não vamos dar mole pra deputado nem pra senador que apoiar uma vergonha dessas, e eles são inteligentes e sabem que vão entrar numa podre se apoiar uma pouca vergonha, um lixo moral e uma lei esdrúxula que não tem em lugar nenhum do mundo. Eu quero dizer aqui, aos senhores, que Conselho de Medicina, de Odontologia, de Engenharia, de Psicologia, até estatuto de igreja evangélica... vocês podem botar o que vocês quiserem: se ferir o preceito constitucional, não é válido. Eu vou lembrar aqui a frase do ministro relator que liberou a marcha da maconha, que eu sou contra porque maconha é crime, mas o ministro, o relator, ele diz o seguinte, o ministro Celso de Mello: ‘O pensamento deve ser livre, sempre livre, permanentemente livre’. Já tem um parecer do Supremo Tribunal Federal pra maconha, que é crime; o cara pode fazer passeata a favor. E eu não posso falar contra a prática dos homossexuais. Eu vou aonde quiserem. Eu vou até ao Supremo Tribunal Federal. Não pensa que vão me calar não”.
Se há quem o queira calar, passou ao largo de mim, que trouxe a transcrição da fala do pastor para repercutir neste espaço. Malafaia teme a criminalização da homofobia pois, se o motivo de ser contra a maconha é o fato de ser crime, tornada crime, a homofobia terá de ser defrontada por ele, que a utiliza não às vias fato, mas no verbo disparado pela língua acobertada de um manto divino chamado estou-certo-porque-digo-que-falo-em-nome-de-Deus-e-está-errado-quem-fala-contra-minha-palavra.
Setenta e sete por cento dos evangélicos ouvidos pelo Ibope desaprovam a união estável entre casais do mesmo sexo. De acordo com a pesquisa, é a parte da balança que mais pesa pesado contra a igualdade de direitos entre casais de mesmo e de diferente sexo. Mais que pessoas com mais de 50 anos (73%); mais que quem estudou até a quarta série do ensino fundamental (68%); mais que homens (63%); mais que as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (60%); mais que a média brasileira (55%).
A preocupação doutrinária com uma lei que puna a homofobia é imensa para lideranças evangélicas porque eles temem ser punidos.
Para não abrir precedente, o deputado Anthony Garotinho, vice-presidente da bancada evangélica no Congresso (composta por mais de 70 deputados federais), fez chantagem com o governo na época do caso Palocci, quando chamou o ex-chefe da Casa Civil de diamante de 20 milhões. Garotinho chegou a assumir a conduta.
“Hoje em dia, o governo tem medo de convocar o ministro Antonio Palocci. Temos de sair daqui e dizer que, caso o ministro da Educação não retire esse material (o kit anti-homofobia) de circulação, todos os deputados católicos e evangélicos vão assinar um documento para trazer o Palocci à Câmara.”
Ou seja, a depender da “troca de favores”, Palocci escaparia.
Já o presidente da bancada evangélica, o deputado, delegado e pastor João Campos questionou a veracidade dos números de assassinatos no país decorrentes de homofobia.
“Estão dizendo que, em todos os casos de assassinato de homossexuais, a motivação foi a homofobia. Será que é verdade? Qual o perfil dos autores desses assassinatos? São os companheiros ou terceiros? Será que tem alguma motivação relacionada com droga, álcool, prostituição? Será homofobia ou o gay está sendo vítima de violência da mesma forma que o heterossexual? (...) Nós precisamos passar essas informações a limpo, para ninguém ser induzido ao erro”.
Concordo que gay está sendo vítima da mesma violência que heterossexual. Esses dias, além de agredido, um pai teve a orelha decepada por abraçar o filho e aparentar serem um casal gay.
Se a bala que disparou contra Douglas tivesse lhe matado e ele se juntasse às estatísticas de mortes no Brasil decorrentes de homofobia, seria mais um silenciado de quem João Campos poderia questionar o mérito do assassinato. Como delegado e, portanto, conhecedor dos bastidores policiais, aposto que ele bem sabe o quão mortos não se defendem nem da sanha de policiais que matam por amor ao gatilho.
Sem incoerência, sem hipocrisia, a pergunta que o Ibope não fez é: quanto dos 77% confunde homilia com homofobia?

segunda-feira, 25 de julho de 2011

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Sábado de cinzas, domingo da paixão; me debelei no final de semana. Eu não soube sofrer a morte de Amy Winehouse e acompanhei à distância os casamentos em Nova York. A sensação é de deslocamento, de não ser fisgado pela bossa que a todos açoda. O trocadilho é involuntário, mas sou gago pra cantar Gaga. Qualquer dancinha de boate me faz o sujeito mais estranho da face da pista. A vantagem que sinto em Amy é a fidelidade ao destino sem evitação de infortúnios. Cheiro os meus problemas. Chafurdo a minha lama. A diferença é que morro anônimo aos noventa. Não sou de lançar tendência. Alexander McQueen é. Sou cheio de dizer não. 'Não' não basta. Tem que dizer "não, não, não". Não é do meu temperamento desbaratar palavras com angústias, essas que, com tensão... disse anteontem Beauvoir, na página vinte e dois que estava no livro sobre a mesa empoeirada na fazenda: “a angústia e a tensão da existência autenticamente assumida”. É isso que eu acho, é isso que eu tento para mim. Troquei o certo na mão pelo pássaro duvidoso voando. “Não se sabe muito precisamente o que significa a palavra felicidade”. Só vejo relevo mercantil para querê-la. Depressão também é produto, induz ao consumo. Escolha qual a dose indefectível pra sua garganta enquanto eu postergo a atitude existencial na tentativa falível de um clímax aqui no blog.
Enquanto você também não vai de vez como um Heath Leadger nu com mãos no bolso, volte sempre!

domingo, 24 de julho de 2011

Não abrace, não mostre. Não pergunte, não conte

Nossa política disfarçada de alimentar o preconceito está sofrendo quebra de sigilo. Não é que mais pessoas encontram-se em pleno estado de consciência sobre quanta homofobia se pratica no Brasil. Este mês, o britânico The Guardian noticiou como a prefeitura do Rio tem batalhado para se tornar capital mundial do turismo gay. Ano passado, a comunidade LGBT representou um quarto das visitas à cidade.
O entrave, porém, está cartografado: o Rio de Janeiro está no Brasil, e o Brasil está ranqueado como o mais homofóbico do mundo. Em 2009, a cada dois dias um homossexual foi assassinado no país. Segunda e terceira colocações (México e Estados Unidos) registraram, respectivamente, 35 e 25 casos que, juntos, são 30% das mortes brasileiras.
Concluindo: ganhamos perdendo.
Ou, concluindo ainda melhor: ganhamos perdendo com folga; e no longo prazo.
Homofobia é uma das caligrafias possíveis para dizer violência. Racismo é outra variante. No mês anterior, pelo campeonato russo, o jogador Roberto Carlos deixou o campo visivelmente chateado após jogarem uma banana no gramado. Em março a seleção brasileira “provou da mesma fruta” jogando em Londres. O volante Lucas precisou retirar a casca de banana jogada da arquibancada. A vitória de 2 a 0 contra a Escócia garantiu a derrota do Brasil para o preconceito.
         O discriminado é um passageiro de segunda classe. Mas todos os envolvidos – agressores e atacados – viajam o mundo na direção contrária ao embarcar com itinerário que leva do presente para o passado.
         A violência simbólica da casca de banana é a mesma na qual tropeçam homossexuais sob discursos irados de um bocado de líderes religiosos que tenta arrogantemente ultrapassar Deus, superando a tese de amar o semelhante (e quer mais semelhante do que alguém que tenha o mesmo sexo que o seu?) para excluir de gays a “salvação” – a não ser que nos arrependamos...
         (“Deus, estou arrependido de ser gay. Acho uma pena ter passado esses anos desejando homens enquanto há tantas mulheres por aí. Sei que é por temor a ti que verdadeiros cristãos atingem a ereção pelas cristãs. Não é nenhuma libido que os move, apenas a necessidade de perpetuação da espécie e de culto ao Senhor. É a vontade de reprodução que os leva ao sexo, já que o sexo pelo simples prazer do gozo é uma conspurcação. Sei que se fosse determinado pelas escrituras sagradas o desapego de sua orientação sexual [como foi a Jó determinado desapegar-se de seus bens], os heterossexuais tementes não teriam o menor problema em passar a desejar outros homens e seus paus seriam indiferentes a qualquer decote feminino. Tenho certeza de que alguns heterossexuais, sendo maioria e historicamente tendo mais voz na sociedade, não se aproveitam do fato de gostarem do sexo oposto para dizer que este jeito é o correto em relação ao outro”).

         Quando o pastor Silas Malafaia esteve em audiência pública da Câmara Federal para discutir o Estatuto das Famílias, a televisão foi mencionada como vilã na degringolada deste núcleo social. Ele advertiu que nós sabemos quem está por trás, operando a mídia. Claro, ele não falava diretamente do demônio, mas de pessoas que contrariam sua doutrina.
         O fracasso dessa defesa está na impossibilidade de haver outra versão familiar possível. Venhamos e convenhamos: excluir o merecimento existencial de uma experiência familiar homoafetiva é nazificar a religião, é um “vetar judeus”. “Aceitamos o homossexual, o que nós não aceitamos é a homossexualidade (???)”. O vereador Jean Wyllys disse coisa parecida em entrevista para Marília Gabriela, ironizando o discurso hipócrita de uns fiéis.
Jean venceu o Big Brother Brasil. Marcelo Dourado, idem. O primeiro trouxe a pauta “dignidade LGBT” à televisão. O segundo propôs uma desconstrução do politicamente correto. A tevê tem natureza retalhada e instantânea. Produto televisivo, a telenovela é uma obra aberta e permite-se experimentar tal como mudar o plano no meio do percurso. A Rede Globo fez um desbaste onde detectou excessos na militância gay em Insensato Coração. Com a novela, muitos assuntos entraram na ordem do dia. Lato e stricto sensu, conheço casos de pais liberais até o passo em que souberam da homossexualidade dos filhos e sei das etapas para aceitar a si e ser aceito pelos pais. Trazer o gay ao convívio dos eleitos é o mais importante. Gravar a cena do beijo (já mostrada em Amor e Revolução) é a consequência que tem a ver menos com dramaturgia que com transformações sociais e políticas.
Nesta estação de proporções continentais chamada América, enquanto a contradança do Congresso brasileiro fez naufragar o PL 122 e o kit anti-homofobia não vingou, os Estados Unidos embarcaram em outra direção. O presidente Obama entende que é inconstitucional tratar homossexuais de forma diferenciada. Foi revogada de uma vez por todas, na sexta-feira (22), a lei “Don’t ask, don’t tell”, e militares gays poderão sair do armário. Na Califórnia, a SB48 garantirá reconhecimento da luta e conquista homossexual nos livros didáticos. O governador Jerry Brown defende que a História deve ser honesta.
A bomba que os americanos estão desarmando é a mesma que explode por aqui, cada vez na mão de mais vítimas. Não são só gays os prejudicados. Homofobia se espraia e dias atrás soubemos de pai e filho que, abraçados em público, foram espancados. As aparências enganaram um grupo de batedores que entenderam a cena como demonstração homoafetiva de um casal. O pai teve a orelha decepada pelos dentes de um carnívoro que tem a vontade literal de comer gays.
Se não houver esforço conjunto para reprimir a homofobia, por triste que pareça, orelha será apenas prato de entrada.

domingo, 17 de julho de 2011

Apetite

         Em bandeja métrica e de madeira – o palco –, para centenas de comensais, a cidade inventada de Thiago Pethit, Berlim, Texas, foi servida ontem (16) em Goiânia, Goiás.
         Prato quente, se Pethit deu dissabor a Gloria Kalil, foi pela letra h, um transbordo para o sentido de pequeno a que o sobrenome artístico possa ter se sujeitado no francês.
         (Porque ele é e tem uma fração maior que pequeno).
         Em nome da proporção assinada por cada um, Lea T traz trans em caixa-alta. A modelo deu luz meridiana ao lado penumbroso da vida que leva. “Remédio, terapias, operações e preconceito”, enumerou.
         Minha amiga Mel, anos antes referida Michel, tirou “ich” do nome, “ixe!” da boca de terceiros e assinou Mel.
         Implica que Mel não é Michel e Lea T não é Thiago Pethit. Essas iguarias estão contidas em cardápio não mais sonegado.
         No programa Roda Viva, em maio, Ney Matogrosso identificou que entre as personalidades LGBTs da Rede Globo não acontece uma diáspora do armário. Neste caso, vira metalinguagem a resistência de Sueli (Louise Cardoso) em aceitar o relacionamento do filho Eduardo (Rodrigo Andrade) com Hugo (Marcos Damigo), na novela das nove. O objetivo dramático do percalço é orientar a trama para a virada, onde a mãe admite a orientação do filho – e com isso ensina aos espectadores didaticamente.
         Está longe de ser um projeto das emissoras de televisão. Depois do beijo entre Giselle Tigre e Luciana Vendramini, na novela “Amor e Revolução”, o SBT recuou da decisão de transmitir o primeiro beijo entre homens na telenovela brasileira devido à insatisfação do “público em geral”. O “Domingo Espetacular”, da Record, gastou minutos e profissionais gabaritados para exibir uma ridícula reportagem sobre o kit anti-homofobia, ideologicamente tratado como kit gay.
         Deplorável é o descaminho do empresário da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo, ao expor um garoto de nove anos que, ante a “possessão” da mãe, é vergonhosamente induzido a vender todos os brinquedos que tem para doar o dinheiro à Igreja sob a promessa de ver os pais felizes e curados do demônio. No vídeo, por trás desse plano diabólico, em segundo plano, labaredas artificiais (tanto quanto o teor da promessa) adornam a “Fogueira Santa de Israel”, que cobra sacrifício dos fiéis e interpreta que sacrifício sejam doações volumosas para a Igreja, que se capitaliza sem pagar impostos, que esguicha o dinheiro não tributado da Universal em horários da madrugada na Record a preços fora de mercado, que infunde o projeto doutrinário no meio forte de comunicação que é a emissora, que rejeita tolerância e igualdade de pesos e direitos para homossexuais e que esconde a origem infernal da combustão desse fogo.
         Ontem, no show, prestei culto à interpretação e voz do autor e prefeito de Berlim, Texas. Variante, não fixada, grave e delicada. Sou cidadão daquela cidade inventada. Meus votos são de que nem todo h sobrado mereça gay como explicação. Por outro lado, que um T de trans também haja. Que descubram Mel em Michel.
         Eu, por exemplo, tenho fome de Pethit.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Amanhã é 23

Amanhã alcanço a idade mais próxima da chegada dos espirituosos vinte e quatro anos: os vinte e três. Aniversariar é ser felicitado pelo fechamento do ciclo etário, ano em ano. Passando o seis de julho, minha luta é por completar vinte e quatro. Nesta véspera, o vespeiro foi espojado por Ghulam Nabi Azad, ministro da Saúde indiano. Em conferência sobre a aids, ele declarou a homossexualidade como doença, como anormalidade.
Doenças são impositivas; negativas. Não deixam alguns afetados comemorarem o ano seguinte. Pior que tê-la é ganhá-la. Talvez meu esgotamento seja a áspera luta por cada dia sobrevivido. Custou força braçal descortinar o que eu escondia em mim de mim. Destampar homossexualidade com uma mão e tapá-la com a outra; esconde-esconde doentio.
Ser gay é Eisenstein, efeito cinematográfico de luz e sombra, drama. Por isso desde os nove subir no palco e interpretar meu modelo shakespeariano. Por isso ter ido para a faculdade estudar cinema. Por isso mudar para São Paulo atrás de uma pós-graduação em roteiro. Por isso declinar do sonho. Por isso a racionalidade pós-desencantamento. Por isso da mudança de roteiro.
Meu ano XXIII está em fase terminal, e eu, lutando em oposição ao luto, corro o hoje por quase vinte horas, desde as quatro da manhã, atrás do dia seguinte, querendo faturar o que ainda não veio. Uma ânsia perfeccionista dos prejudicados, dos, com pênis, castrados.
Rotula-se que gays sejam inteligentes (pra não serem, fora veados, burros), sensíveis (porque sofrem a subtração do substantivo “homens” ainda que o sejam, não importa se héteros ou homossexuais) e educados (por saberem da pele à alma o que é o desrespeito de um ministro da Saúde e seus anteriores que notificam a “doença da orientação”).
Ainda fui contemplado com o canhotismo – o uso, à contramão da maioria, da mão esquerda. Sei o que é diversidade e me aperfeiçoei todo esse tempo em aceitar o outro, em me dobrar às intenções da puta de Plínio Marcos, Neusa Sueli (em cena, já a vivi).
A chegada do amanhã para um gay neste planeta terceiro-mundista contaminado de preconceito é uma vitória. A homofobia é a aids para gays. Mata e suicida. Pisoteia e deprecia. Emagrece e desvitaliza.
Não tenho aids, e ainda que não, um ministro me conclama soropositivo. Não é atrás da aids que corremos. Buscar consciência do próprio valor é saudável.
Quero de presente que o preconceito dê seu último suspiro e não resista.