domingo, 19 de junho de 2011

Mundo para todo mundo

         As Forças Armadas do Brasil se preparam para o toque de recolher definitivo de novas normas velhas. “Novas” porque o Estado dividiu águas desde o Cinco de Maio, data histórica de quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu unanimemente por reconhecer – não mais ignorar – a união estável entre casais do mesmo sexo. Os Estados Unidos já preparam seus soldados para derrogar o “Don’t Ask, Don’t Tell” (DADT). Promulgado em 1993 por Bill Clinton, permite a presença homossexual nas Forças Armadas americanas desde que não manifesta publicamente.
Lá, cerca de 90 leis e regulamentos serão adaptados à nova situação, inclusiva, e os soldados não oferecem resistência ao treinamento de passagem. Aqui, um dia depois do parecer da Corte, o ministro da Defesa, Nelson Jobim, apressou-se em dizer que os direitos de militares gays com união estável seriam garantidos.
Uma portaria do Ministério da Saúde divulgada na semana passada elimina da triagem para doação de sangue a pergunta sobre orientação sexual. Continua, porém, a preocupação relativa à maior incidência de contaminação por HIV em homens que fazem sexo com homens (MSM) e homens e mulheres que têm muitos parceiros. Ao largo da discriminação, pretende-se dar evidência ao fato de que o sexo praticado de forma insegura compromete a saúde do doador. Ponto. O cuidado não recai sobre mulheres que têm parceiras, e a concepção de MSM é em outra instância que não a da orientação sexual.
Não é só o passado que ficou anterior ao Cinco de Maio, mas uma fatia generosa de congressistas atracada em um retrocesso continental. Eles são umbilicais e torcem por si mesmos, por seus mandatos, por seus patrimônios. Preservam os próprios interesses, não questões coletivas como as do meio ambiente – haja vista a escolha pelo modelo vencido de Código Florestal.
Ultrarreacionarista, o pastor evangélico Magno Malta falou em renunciar ao mandato de senador caso seja aprovado o PL 122, que criminaliza a homofobia no País. Na Casa ao lado, os deputados João Campos (pastor evangélico) e Eros Biondini (músico católico) apresentaram projeto que impede líderes religiosos de contrariar suas convicções e doutrinas. A cautela é para que os líderes não sejam eventualmente compelidos pela lei a realizar matrimônio entre casais homossexuais.
Um álibi que a Frente Parlamentar Evangélica lançou mão para negar respaldo legal a vítimas de homofobia é que todos são iguais perante a lei e não pode haver proteção exclusiva a gays. Detonando contradição, agora pretendem imunizar lideranças religiosas dos efeitos da lei.
Mais me impressiona é que a homofobia causa estragos mortais, enquanto o pano de fundo dessa imunidade pretendida a líderes religiosos é a defesa do direito desses de discriminar.
Impressiona-me também – mas graus a menos – que a imunidade fiscal por que se beneficiam indevidamente algumas igrejas  em operações financeiras como débito em conta para doações de dízimo, lançamento de cartão de crédito, denúncias de superfaturamento de preços na compra de horário na mídia, concorrência desleal entre canais de TV financiados por Igreja para fins comerciais, não inquiete deputados e senadores das bancadas religiosas.
Parece que tem um Brasil cego à laicidade do Estado e conivente com os desmandos dessa modalidade temida de políticos: os que ignoram declaradamente a lei dos homens.
Cristãos à parte, ninguém serve a dois deuses. O Estado e a Igreja são poderes colaterais, não se cortam, pois tem cada qual seu manual. A Constituição Federal não é bibliolátrica.
A Igreja é eclesiástica e o Estado é laico, que significa não pertencente a nenhuma ordem religiosa, que significa hostil ao controle intelectual e moral da Igreja sobre instituições públicas. E parlamentares religiosos, em profissão truculenta de má-fé, espezinham nossa Carta Maior a fim de que ela se dobre à autoridade do pastor. A título de curiosidade, Magno Malta o é. Ele se recusa a permanecer parlamentar se sua crença evangélica (a quem o Estado laico nada deve) for contrariada.
         Um Congresso que dá ao parlamentar latifundiário o direito de desmatar, ao parlamentar pastor o direito de discriminar, não representa o povo, porque governa em causa própria.
         Na semana em que, com o voto do Brasil, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou pela primeira vez resolução que condena a homofobia, afirmando que todos nascemos “livres e iguais”, em votação majoritária que pede revisão de leis discriminatórias e de práticas violentas contra pessoas devido a orientação sexual ou identidade de gênero, focos de retrocesso incendeiam pontos isolados do mapa do País.
         No Acre, a Assembleia Legislativa pratica censura contra o filme “Eu Não Quero Voltar Sozinho” em razão da temática de relações homoafetivas. Em Goiás, o juiz Jeronymo Pedro Villas Boas (sem o Judiciário sequer ter sido provocado) anulou a primeira união gay do estado. Em Brasília, nomes da política ressoam sem grandes feitos, apenas por declarações e atos fascistas, em nome da discriminação contra a “subversiva” prática de amor consensual entre seres humanos, mais deletéria que a trapaça de santos dos paus ocos, rígidos e violentadores.
         O avanço do tempo na mudança de década no jovem século há de dar seu jeito, mas da maneira incidental é possível detectar a revolução prosaica do movimento. As pessoas associam-se no desejo íntimo de felicidade, de não ter culpa de gostar. O casal lésbico Lanna Holder e Rosania Rocha fundou em São Paulo a igreja evangélica Comunidade Cidade do Refúgio, prontificada a acolher “todos os machucados e feridos, todos os que foram escorraçados pela intolerância”. Só no primeiro dia de funcionamento, a novidade teve público de trezentas pessoas.
         Iguais, queremos às centenas de milhões um mundo no tamanho que comporte todo mundo, inclusive modelos familiares flexíveis, alternativos à verdade da qual Malta, Campos e outros lamentáveis tantos dizem ser portadores. Embora eu nem saiba se devo chamar isso de "verdade" ou "doença crônico-degenerativa".


         Nada além da obrigação

         Nem pertencendo à Frente Parlamentar Evangélica ou por ser heterossexual o deputado federal Sérgio Britto (PSC-BA) mostra-se empenhado a poupar o iníquo Jair Bolsonaro, processado na semana passada por acusações de quebra de decoro. Antes de tudo, porque Britto, em cumprimento à legalidade, disse que o posicionamento religioso de sua bancada não o influenciará no parecer. E depois, porque só mesmo uma ingenuidade bolsonariana para acreditar em rivalidade extensiva entre héteros e homossexuais.
“Vizinho gay desvaloriza imóvel”, disse Jair à Playboy, confirmando que a grande zebra do Congresso, ao contrário do que se esperava, não é Tiririca. O dito “palhaço” já apresentou projetos ligados à Educação, em esforço para reconstituir a trincada em sua imagem, produzida pela campanha de apelo humorístico no período eleitoral.
Bolsonaro tem mais é que criar motivos para que falem mal dele. Do contrário, de bem, não houve o que dizer nesses tantos anos de carreira política. E continua sem ter.

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