domingo, 8 de maio de 2011

João-ninguém é maria vai com as outras

A religião é berço doutrinário do intolerantismo e, embora seja prática consolidada dirigir a harmonia entre os povos – a santa paz –, pode invocar esse recurso como última instância na violência cruzada ou acobertada por véu – a guerra santa. O Estado democrático de direito é laico e, em face do irresolúvel, o Supremo Tribunal Federal (STF) é sua última instância na pluralidade de onze pensamentos irrigados da Lei Maior do país.
O intolerantista religioso encerra o diálogo em nome de Deus. “Mas não sou eu quem está falando, é Ele”, ouvi certa vez de alguém que tentava me persuadir do pecado gay, supostamente inscrito em I Coríntios, capítulo seis, versículo nove (com todo o respeito, só decorei-o facilmente pela combinação meia nove). O recado é que os efeminados não herdarão o Reino de Deus.
A opinião – e não o ponto final costumeiro, de ênfase exclamativa, com que o intolerante religioso pretende arrematar uma discussão, confluída aos limites da armação dos próprios óculos – fundada no recortado ensinamento pilular (um de dezenas de milhares de versículos), manobra-se ao sabor do intérprete e da combinação.
         É nessa estratégia falaciosa, de sujeitar o todo à partícula, que o deputado federal goiano, João Campos, questionou a constitucionalidade da união homoafetiva no dia em que o STF iniciou julgamento histórico com respeito ao assunto. “A Constituição é clara no seu Artigo nº 226, parágrafo terceiro”, disse ele em texto publicado na editoria de opinião do jornal “Diário da Manhã”, em 4 de maio.
A Carta Magna reconhece “a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Com isso, Campos transbordou o sentido patente para dizer que a Constituição não reconhece a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Não é isso que está escrito lá. O texto constitucional é guardião da igualdade, liberdade e dignidade humana, inclusive na proteção do Estado às minorias. E se o legislador, como o ministro Luiz Fux houve por bem anunciar junto com o voto, não garante a defesa, compete ao Judiciário fazer cumprir.
Enxergar além do que se vê na Lei é desconfiável porque, deste modo, se enxerta o subentendido onde há resoluções pétreas com importância extensiva e imutável. Então, não pode ser ambíguo. Para o artigo 226, dizer do reconhecimento legal à união estável heterossexual como entidade familiar não é o mesmo que dizer do reconhecimento legal apenas à união estável heterossexual como entidade familiar. Seria discriminatório, se assim o fosse, e a Constituição Federal não discrimina.
As entrelinhas são lacunas da parte escrita, não o expressamente dito. No espaço em branco cabem acepções conflitantes, e elas não podem ser apreciadas pela Suprema Corte mais que a escritura literal.
         A caligrafia contemporânea da sociedade brasileira escreve em caixa-alta que 60 mil casais de igual sexo dividem igual teto, que o país tem mais lares habitados por um só morador do que nunca, que a violência causada por homofobia gerou, de janeiro a novembro do ano passado, 205 assassinatos no país. Mas o superintendente de Direitos Individuais e Coletivos da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro, Cláudio Nascimento, projetou para até 12 mil os casos de discriminação contra a população LGBT no mesmo período de 2010.
         A realidade instalada é eloquente e não há interpretação que engula a população gay do território nacional. Ela pode ser proibida de subir ao altar, mas este é um aspecto, um direito das igrejas de selecionar quem participa de sua doutrina e quem não pode com seus ritos, no âmbito de sua liberdade regrada. O que não pode é o Estado, representado por seus poderes, privar da liberdade plena para exercício da identidade de orientação sexual um grupo pátrio marginalizado por I, G, R, E, J ou A, por menor que ele seja. Este é o zelo pela igualdade.
Além de deputado federal – modo como assina o artigo –, o também delegado e pastor João Campos emaranhou ideias indefensáveis. Em “O casamento não faliu”, Campos começa falando que, ao ler a matéria “Casar esta (sic) na moda”, editada dias antes no Diário da Manhã, veio-lhe, “de imediato, à memória as profundas transformações que vem sofrendo nossa sociedade ao longo dos últimos anos”. Em desenvolvimento ligeiro ao raciocínio, redundou: “São mudanças profundas que mudam de certa forma o nosso comportamento e visão de mundo”.
Ele atribui as “mudanças profundas que mudam” ao que avaliou como “conglomerado de informações que devastam nossa cultura, consciência, valores, princípios e conceitos éticos imprescindíveis à nossa sobrevivência social e espiritual”.
O que ele pretendeu dizer com isso? Que a sociedade “tem deturpado o sentido real do casamento”. A sustentação nada laica (daí acho uma pecha conceitual ter-se apresentado apenas deputado, ao passo que podia incluir o papel de líder religioso, para ser honesto com o leitor desavisado), com a qual justifica-se, é a de que a deturpação do casamento “nasce quando um novo matrimônio é constituído e tem tentado destruir a imagem do lar que, a princípio, foi estipulado por Deus!”.
O exemplo enunciado pelo pastor, de que “o poder do casamento sobre a vida das pessoas é algo que chega a impressionar”, foi o recente casamento entre Catherine Middleton e William, o príncipe.
Mas de que valoração à união conjugal este exemplo fala a não ser do casamento na condição de espetáculo, de narração amiúde dos bastidores da realeza britânica – que vai do casamento ao divórcio, do modelo imitável ao escândalo –, de cada réplica de anel, vestido e de toda filigrana convertida a produto na indústria de banalidades empacotadas sob a forma de notícia (e sob o conteúdo publicitário). Eis a estruturação espetacular que rui o sentido íntimo e particular do casamento, encontrado, por exemplo, na união de homossexuais, que não partilha do favorecimento midiático.
O deputado insufla sua versão de verdade usando a tutoria religiosa no tom profético, negligenciando o espírito democrático que resguarda minorias e com disparates como dizer temer “por uma decisão equivocada e tendenciosa do Supremo”, ou ainda: “Se o motivo (de, na união estável, se querer assegurar a casais homossexuais direitos iguais aos de casais heterossexuais) for apenas para efeitos patrimoniais, vejo que não há necessidade de afirmar que o relacionamento entre homossexuais seja um casamento”.
Mas, como não é apenas para fins patrimoniais, há necessidade.
“Não há, por minha parte, oposição aos efeitos patrimoniais das decisões em relações homoafetivas, mas considerá-las como união estável seria no mínimo incompatível”.
         Incompatível com o quê? Com o que pensa João Campos? Mas por que considerá-lo se até o STF, com sua observância e rigor técnico no cumprimento da Constituição, ignorou-o?
Motivos para desautorizá-lo ele próprio deu. Muitos. Mentiu ao dizer que “o fato de o casamento ser a união de membros do sexo oposto é tão profundamente arraigado na natureza humana que ele tem sido assumido, sempre e em todo lugar, sem qualquer discussão”.
         Hoje, o Brasil vive essa discussão, e perceber que no Congresso há quem seja ignorante a ela dá o diagnóstico do despreparo político dos nossos legisladores e sua falta de compromisso com as questões do país.
João Campos não é despreparado apenas para legislar. Contraria o entendimento moderno de família como grupo unido pelo amor e por laços afetivos. “É óbvio que não há uma segunda opção na estrutura da família, o que há são interesses e mentes distorcidas que querem, a qualquer custo, legalizar as suas vontades, independente de serem ou não atos que atentam contra a moral.”
Para ele, “A família provê a perpetuação biológica da espécie humana”, quando na verdade nem sempre. Não é a perpetuação que está em jogo no agrupamento familiar. Isso funcionaliza o vínculo. É da mesma ideologia machista que reconhece a mulher como reprodutora.
Que se saiba: um casal gay não anula um casal hétero que por ventura venha a se unir por fins específicos de procriação (ainda que, neste, o homem peça depois à mulher que aborte, ou que a mãe deposite o rebento em alguma lixeira, ou ainda que esse filho, crescido, seja malquisto pelos pais caso seja gay).
Por razão íntima e inviolável algumas pessoas gostam de outras com mesmo sexo. É por foro íntimo, e não outra força maior, tanto quanto um heterossexual adota relacionar-se com seu sexo oposto e tem a comodidade de estar conforme a maioria.
É nesse espaço de liberdade que eu empregaria a palavra saudável. O pastor João Campos propõe aplicação diferente:
“Não podemos aceitar que os valores que solidificam uma sociedade saudável, estabelecida sobre o respeito e a moral, não fazem (sic) mais sentido para quem detém o poder, já que nas suas posições e decisões eles preferem legalizar o erro a ter que combatê-lo”.
         “Combatê-lo” foi uma expressão infeliz do também (não percamos de vista) delegado Campos. O que significa combater a união entre pessoas do mesmo sexo em vez de legalizar? Impedir que elas se unam? E como se daria? Nem uma intimidadora força de polícia é capaz de combater que alguém prefira A por O.
         Conforme alguns ministros, a decisão do Supremo Tribunal Federal “foi a travessia que o Legislativo não quis fazer” e é o primeiro passo para vencermos “o ódio e o preconceito em nome da lei”.
A união homoafetiva é uma realidade social, e faria bem à sociedade se João Campos, em lugar de repetir estultices sobre o assunto, copiasse as declarações de repúdio pleno e absoluto a atos de covardia e violência contra homossexuais, à espécie do que fez o Supremo na semana histórica para os direitos humanos. A ministra Cármen Lúcia refletiu que, sedimentado um direito, fica difícil entender que houve dificuldades para conquistá-lo.
Somos testemunhas oculares da discussão que enseja elevar o Brasil à estatura de países democráticos de referência no trato igualitário e digno de suas populações. Alguns, por legislarem em causa própria, são assintomáticos ao desejo de emancipação coletiva e defendem escravidões alheias, senzalas para terceiros, parâmetros para encontrar no outro o passageiro de segunda classe.

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