sábado, 28 de maio de 2011

Aquele-que-não-deve-ser-nomeado

Será que ele é ggg?
Palavras nomeiam coisas. Agem em nome do que representam. O inominável esgota-se em perda do corpus e não tem capturabilidade. É tiro sem bala.
Vali-me de ironia para intitular meu blog. Acho que a pergunta tem que, urgente, ser contraperguntada: “O que será que L. é?”. Antes da queda na tentação de subentender gay como completador natural à indagação “Será que ele é?”, é preciso – tal qual navegar é – assumir a sustinência da frase, assumir que as rédeas são puxadas como em mãos aflitas, a cavalo, surpreendidas pelo penhasco: a impronunciável palavra gay.
         “Homossexual” está desenquadrado para o uso cotidiano como está “ânus” para substituir “cu” quando manda-se ir tomar nele. Pensemos: expressões tais quais “levar na bunda”, “tomar no cu” e “vai dar o rabo” não solidarizam com o vocabulário cortesão. Mas consummatum est. Et pourquoi?
         Porque fingir refinamento francês, o revivalismo cristão das citações latinas e o alegado espírito cosmopolita dos familiarizados com o idioma inglês não nos assegura títulos de bons-moços, de bem-criados, de cidadãos do mundo, de iluminados pelo século XXI. Tomamos o bonde errado e o destino principal do nosso embarque é o passado.
         “Brincar” com as palavras faz parte do nosso processo de mutilação do ser para garantir o enfraquecimento das minorias. O negro não foi simplesmente considerado carne de segunda por força do divino. Quem disse não para a mulher, em um mundo guiado pelo (sempre bem habilitado à direção) homem, não foi sua suposta natureza frágil. Não foi a seleção natural que derrotou seis milhões de judeus em troca de um único austríaco. O verbo edulcorou a acidez dessas e outras atrocidades. Posso enxergar uma mulher, mas é a manipulação da palavra que me habilita a vê-la como objeto.
         O Brasil é brincalhão. Brinca que a loira é intelectualmente incapaz, que preto caga na saída se não o fez na entrada, brinca de golpear homossexuais com duas lâmpadas fluorescentes, de assassinar a jovem Adriele Camacho de Almeida para interromper seu namoro com outra garota, brinca de violentar soldado de 19 anos em quartel de Santa Maria e proteger quatro denunciados porque a vítima é gay. E não de hoje, começa cedo a brincadeira de chamar de maricas ou mulherzinha o menino que estiver com medo.
O Brasil é um país temente a Deus, tanto que a Igreja católica excomunga os envolvidos no aborto sofrido por uma criança de 9 anos estuprada pelo padrasto. O motivo, para dom José Cardoso Sobrinho, é que aborto é crime e a lei dos homens não está acima das leis de Deus. Tanto que bancadas evangélica e católica do Legislativo tentam derrubar a decisão do STF sobre a união civil. Pois o Judiciário não entende nada de justiça divina. A Justiça do Rio não entendeu que a Igreja Universal do Reino de Deus possa recorrer da decisão de indenizar a aposentada Edilma de Oliveira, chutada em culto por um auxiliar de pastor com a boa intenção de acertar o demônio e, desde o exorcismo, em 2004, vítima de lesões irreversíveis.
         Basta claridade para ver o malabarismo de discurso para “confundir a opinião pública”, como têm dito certos (e errados) políticos. O deputado goiano Ronaldo Caiado, expoente da bancada ruralista e membro de uma família proprietária de latifúndios com histórico de desmate e trabalho escravo, chamou de mandruvás os verdes que se opuseram à aprovação do novo Código Florestal, em sessão realizada na última terça-feira (24). Criticou os ambientalistas por morarem nas cidades e discutirem assuntos que ele entende como estritos ao campo. Ora, eu próprio, no ano passado, tive a oportunidade de vê-lo saindo de seu prédio localizado em área nobre de Goiânia.
A política e as lavouras fizeram muito bem ao patrimônio do deputado Caiado, e foi em nome disso, não da realidade do pequeno homem do campo, que ele discursou inflamado pela queima da floresta. Do contrário, teria havido uma reflexão sobre a morte do casal José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, executados a tiros depois de sofrerem ameaças de madeireiros. Duas vítimas do descaso do governo, como definiu a sobrinha do líder extrativista que defendia a vida da floresta, ciente de que, para isso, submetia a sua própria ao risco. “Meu tio foi vítima do descaso. Ele ficava muito exposto e nunca os governos se manifestaram para dar apoio a ele. É revoltante, principalmente porque ele lutava por algo que deveria ser uma bandeira de luta do governo federal e estadual e não apenas dele”.
         Em vez disso, no dia em que o meio ambiente ficou duplamente em luto, ecoaram risadas no Congresso quando o caso foi lembrado.
         Na mesma sessão, o presidente da Frente Parlamentar Evangélica, delegado e deputado João Campos (PSDB-GO), e o vice-presidente da mesma bancada, Anthony Garotinho (PR-RJ), condenado por crimes de formação de quadrilha, corrupção, lavagem de bens, abuso do poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação, ameaçaram o governo: convocariam Palocci para explicar seu enriquecimento durante o mandato de deputado federal caso a decisão de distribuir nas escolas kit anti-homofobia fosse levada a cabo.
         A presidente recuou e os evangélicos e católicos, também. Prova de que, somando o coro, estão se lixando para o país, Campos e Garotinho desistiram de investigar Palocci, já que suas preces foram ouvidas por Dilma. O Ministério Público Federal assumiu o compromisso de vistoriar os ganhos do ministro da Casa Civil, como coube ao Supremo decidir sobre a validade da Ficha Limpa e a vigência da união homoafetiva estável. Se a Frente Parlamentar Evangélica se ocupou de suspeitar de alguma ilicitude, foi apenas para chantagem e uso como moeda de troca em favor de agrados do governo. Estão trabalhando pelas próximas candidaturas junto a seus eleitores fiéis, mas sua pendência com a função para a qual foram designados no Congresso é notória e imperdoável. Estão em dívida com o povo brasileiro.
         Há duas semanas e meia, os evangélicos impediram a votação do projeto que criminaliza a homofobia. Não por não acharem que homofobia não exista, mas por eles praticarem-na. A depender do bom-senso parlamentar evangélico, é preciso ignorar as mortes e agressões cometidas do Oiapoque ao Chuí devido a ímpetos homófobos. Evidente que eles não seriam a favor de que o assunto fosse levado às escolas em linhas pedagógicas.
         A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) apoiou a distribuição dos kits contra a homofobia por avaliar que eles contribuiriam na “redução do estigma e da discriminação”, além de promover equanimidade e qualidade no ambiente escolar.
         Pasma que, em vez de julgar positivo o projeto no combate à discriminação e unir forças para aprimorá-lo, tenham feito campanha contrária, valendo-se inclusive dos tentáculos dos meios de comunicação do segmento (destaque para a cobertura tendenciosa da Record) para difamar os kits. E a que eles recorreram senão à trapaça lexical? O material pulou de “kit contra a homofobia” a “kit gay”. E fica clara a corrupção do sentido primeiro, de combater com educação a violência e intolerância contra homossexuais, traduzido dolosamente para uma espécie de manual para tornar-se gay, como se estivesse ao alcance ou fosse a intenção do MEC decidir a orientação sexual do indivíduo.
         Quem se esforça inutilmente por esse poder são outros. Os mesmos que armam-se de ferramentas ideológicas para conferir tarja preta à palavra gay e, com isso, afogar a existência homossexual. O paraíso é um lugar bíblico não frequentado por efeminados, mas aos gays é perfeitamente cabível a existência pacífica de grupos que testemunham o mundo com diversidade de olhares; não à toa a palavra diversidade ter sido inexoravelmente colada à semântica homoafetiva.
         Escolho o caminho sustentável pelo qual pessoas e suas circunstâncias podem andar em pés de igualdade. Assim me sinto sagrado, sem brincar de esconder a letra n, como insistem em agir aqueles que não devem ser ocultados: os hipócritas.

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